PING-PONG COM A RME: Esportista, jornalista e empreendedora, Mia Lopes acredita na valorização de corpos negros no esporte brasileiro
“Do lado de cá temos pessoas negras fazendo histórias, mas essas histórias não chegam à população. Quando permitimos que histórias negras cheguem até a população negra, mostramos que há representatividade e que esse esporte também é para ela.”
Publicado em 8 de julho de 2022
Fazendo convite para pessoas negras interessadas em escrever sobre esporte, Mia Lopes comanda a Afro Esporte, primeira plataforma de produção e curadoria de conteúdo e gerenciamento de carreira de atletas negros, negras e LGBTQIA+ no Brasil. Em entrevista para a RME, ela falou sobre a variedade de talentos negros no esporte, desvalorização do Estado e ainda propôs uma reflexão aos leitores.
RME: A periferia pode e é uma potência de atletas que podem competir em esportes de alto nível. Seja no atletismo, boxe ou na natação. Qual o panorama geral do esporte brasileiro em relação aos atletas negros? Por que o Estado não investe nos projetos já existentes?
ML: Primeiro precisamos lembrar que o Brasil é um país que não valoriza a educação e não valoriza o esporte. Pensando na aula de educação física, lá na escola, onde os meninos só jogam futebol e as meninas ficam fazendo ginástica com foco em emagrecimento se torna uma atividade chata. Não existe um estímulo para prática esportiva. A relação com o esporte no Brasil é muito de uma adoração pelo futebol e as outras atividades só vão acontecendo. A outra coisa é pensar que o esporte é um lugar de poder, de conquista, para se construir uma carreira de sucesso. Em um país racista, o esporte é um lugar que acolhe pessoas negras? Se não acontecer o estímulo na educação básica, nas comunidades, para essa prática, vai acontecer menos ainda na periferia porque as pessoas de lá tem que continuar lá, não é? Quando fazemos o panorama geral de onde estão os atletas negros, eu gosto de usar dois exemplos. Nos esportes de elite como esgrima, hipismo, vemos uma representação menor de pessoas negras. Hoje o Brasil não tem nenhum cavaleiro negro competindo em olimpíadas. Então onde vemos atletas negros? No futebol e nas lutas. E por que nesses esportes? Porque eles não exigem equipamentos caros. Na periferia, qualquer coisa, qualquer saco plástico, qualquer garrafa pet vira uma bola. Historicamente, qualquer atleta que tenha crescido na periferia e tenha saído de lá, foi por conta própria. Se ele ganhou fama no esporte, foi fazer carreira fora.
RME: Levando em conta todo esse contexto, é a mesma relação com patrocínio privado, de grandes empresas?
ML: Uma marca quando escolhe alguém para patrocinar, ela não vai escolher alguém apenas para investir na carreira dela. Ela vai pensar estrategicamente. “Eu quero alguém que valorize a minha marca, então eu vou escolher alguém que estampe bem” é o pensamento delas. Num país que valoriza o padrão europeu, quem vai ser o rosto dessa marca? O homem branco, atlético, musculoso, no padrão heteronormativo. Se for mulher, vai ser a menina magra, branca, cabelo liso, loira. Nós temos surfistas negras no Brasil, mas todas as marcas querem a menina loira porque estampa bem, porque é bonita, porque combina com o meu produto. Historicamente sabemos que o corpo negro não é associado ao bonito e falta de representatividade faz com que os atletas negros acabem acessando menos esses espaços, essas oportunidades.
RME: Diante de tantas dificuldades, a localização de espaços esportivos acaba sendo mais um impeditivo para que corpos negros ocupem diversos espaços. Qual é o papel das Ongs e projetos sociais nesse espaço?
ML: Como o futebol e o boxe acabam tendo as melhores oportunidades para melhoria de vida desses atletas, acabamos nos questionando como é que surgem Rebecas, Raíssas? O que acontece com pessoas que despontam em outras categorias? Aqui entram as Ongs, os projetos sociais. Eles salvam vidas, porque no projeto social não tem apenas o esporte. Tem toda uma equipe de educação, uma pedagoga que conversa com esses jovens e descobre se vivem algum tipo de violência ou alguma dor. É no projeto social que eles vão encontrar uma refeição, um lanche. Se fizermos uma lista de atletas que vieram de projetos sociais, ela será enorme. Então pensando no skate, onde as prefeituras abrem centros de skate, mas são todos fora da periferia. Onde que estão as crianças skatitas? Na favela, nas comunidades periféricas. Então, para acontecerem outras Rebecas, Raíssas, para que outros atletas despontem em outras categorias, é preciso que as prefeituras criem centros poliesportivos nas periferias para essas crianças não precisem pegar um ônibus e pagar uma condução que ele não tem condições de arcar, ou para que ela não precise ir para um bairro nobre a uma hora da casa dela. Enquanto não tem centros de esportes no gelo, por exemplo, na periferia, as Ongs vão fazendo o papel do Estado, vão fazendo acontecer para essas crianças.
RME: E, ainda pensando nas condições do meio, para uma atleta que não consegue viver de bolsas e precisa conciliar um emprego fixo com a rotina de treinos. Como é que esse atleta vive? Quanto custa ser um atleta em tempo integral?
ML: O bolsa-atleta tem várias categorias e oferece bolsa de 300 reais, de 1 mil reais, de 15 mil reais que é o valor mais alto na categoria, mas em nenhuma delas dá para o atleta viver da bolsa. Ele sempre vai precisar de uma renda extra para atingir uma prática de alta performance. E para isso tudo significa investimento. Investimento em equipamentos, em alimentação, e suplementação. Vai precisar também de um nutricionista, de profissionais para acompanhá-lo nos treinos, ou seja, um fisioterapeuta, pensando na recuperação muscular, e, principalmente, de um treinador. Ele vai precisar cuidar da saúde mental, com um terapeuta, um psicólogo. Vamos pensar e fazer o cálculo de quanto custa o salário de cada profissional. E essa bolsa ainda deveria custear o bem viver do atleta. Um bom café da manhã com frutas boas, ida ao cinema, teatro para ele manter uma vida social ativa; contas de água, luz para ele viver só de esporte. Mas isso não acontece. Na periferia, esse atleta vai ver de apoio. Quem é o primeiro cliente dele? A comunidade. É o dono do mercadinho ouvir alguém falando “sabe o filho da Maria? O filho do Zé? Tá participando de um campeonato. Vamo fazer uma vaquinha?” Sabe o que hoje chamam de crowdfunding? Na comunidade é feito há muito tempo. É a rifa para conseguir arrecadar dinheiro suficiente para viajar. É o vereador que contribui com um valor em troca de divulgação da campanha dele pelo bairro. E ainda tem a troca de serviços. É a dentista, a nutricionista que tem o nome estampado no uniforme de pugilistas no lugar de onde estariam os nomes de grandes patrocinadores.
RME: Se formos nessa linha, ainda tem os atletas que conseguem fazer publicidade nas redes sociais.
ML: Pensando por esse lado é ainda pior, porque aqueles que tem celular, internet e conseguem fazer bom uso das redes sociais saem na frente. Eles tem estatísticas para oferecer como contrapartida. E o atleta que não consegue gravar um story? Ele só sabe lutar e é isso que ele faz bem. Eu sempre digo no Afro Esporte que performance de atleta se mede em quadra, no octágono, no campo e não nas redes sociais.
RME: Por que é tão importante contar histórias negras, de atletas negros, em um país que não investe no esporte?
ML: Eu sempre gostei de esportes e quando eu me reconectei com o esporte foi através de uma perspectiva de emagrecimento, que é muito equivocada. E eu iniciei uma jornada de pesquisa, de prática de diversas modalidades. Em esportes radicais, comecei a pedalar. E sempre que eu convidava amigos para me acompanharem nas práticas, eu ouvia “ ai Mia, isso é esporte de branco. Essa coisa de ser musa fitness, de ir à academia às seis da manhã, de entrar para grupo de mergulho? Pelo amor de Deus, é coisa de branco”. À primeira vista eu achei que fosse uma relação de desleixo. Eu pensava “nossa, o povo negro não gosta de esportes, minhas amigas tem preguiça de se exercitar”. Mas eu descobri que o nosso tem tantas outras coisas mais urgentes para se preocupar: como voltar para casa, se vai voltar para casa, o gás que precisa comprar, a luz que precisa pagar. Nosso povo está preocupado com a subsistência, com o bem viver, com o básico, que deixa esse lugar de “com qual modalidade esportiva eu vou me conectar?” em segundo lugar. Mais para frente eu entendi, como jornalista, que atletas negros, brasileiros, fazem histórias sim, mas por que, então, conhecemos mais nomes como Ayrton Senna e tantos outros nomes incríveis, mas sempre de pessoas brancas e que o único negro com história mais conhecida que se destaca é o Pelé? Do lado de cá temos pessoas negras fazendo histórias, mas que essas histórias não chegam à população. Quando permitimos que histórias negras cheguem até a população negra, mostramos que há representatividade e que esse esporte também é para ela.
RME: Por que é necessário fazer a preparação de um atleta negro para que ele possa lidar bem com a mídia?
ML: A Afro Esporte está selecionando 10 atletas negros para fazerem parte do nosso primeiro casting de agenciamento e decidimos que, diferente da maioria das agências que tiram uma certa porcentagem do gerenciamento de carreira, daquela conexão que virou publi, daremos masterclass sobre gerenciamento de dinheiro, sobre geração de conteúdo. Porque o que acontece é: o atleta ganha um milhão de reais. Ele vai saber administrar esse dinheiro todo? Quem não aprendeu a administrar pouco, não vai saber administrar muito. Já aconteceu na Afro Esporte de eu pedir um vídeo de um minuto, gravado num certo sentido e chegarem vídeos gravados contra a luz e do atleta não saber a diferença de horizontal e vertical. Esse atleta precisa acompanhar as tendências, saber o que está acontecendo no mundo. Precisa ter o letramento racial porque ele pode ter uma performance ótima, mas o comportamento dele nas redes sociais é machista, homofóbico, gordofóbico. Ele precisa se ver e se entender como pessoa preta. Esse atleta precisa saber falar com a imprensa. Eu já vi críticas às mulheres do futebol sobre elas não saberem falar, se expressar após uma partida, mas os homens também não ficam atrás. A maioria só lembra de agradecer à família, à Deus e não sabe explicar a técnica que o time usou em campo para garantir a vitória contra o rival. Ou se eles perderam, não sabem explicar o que deu errado. As mulheres estão alcançando a publicidade, que ainda é pequena, agora. Os homens sempre falaram assim. Fora que esse atleta precisa aprender a respeitar seus limites, precisa se autoconhecer para saber se perdoar quando perder e tiver todo o seu público te criticando. Porque quando um atleta ganha, o país inteiro aplaude. Quando um atleta perde, o país inteiro te vaia. Isso é muito duro. O atleta precisa de um apoio de 360°, seja na relação com a família, com o dinheiro, com o público, consigo mesmo e o conhecimento sobre essas áreas vêm de conhecimento, leitura, treino, da formação que o agenciamento dele fornece.
RME: De que forma a população e a sociedade brasileira podem apoiar esses atletas?
ML: É uma questão tão difícil de se pensar porque deveria ser algo natural, mas se as pessoas não forem machistas, misóginas, racistas, xenofóbicas, homofóbicas já ajuda muito. E se fizermos a desconstrução da imagem do atleta como herói, como aquele que sempre faz tudo certo e o humanizamos mais, vai diminuir muito a pressão sobre o atleta. Agora, no nosso cotidiano, nós precisamos inserir o esporte na nossa vida. Não dá para apoiar um atleta se não consumirmos o esporte que ele pratica. Tem outro ponto importante também. Por exemplo, o breaking vai estrear como modalidade olímpica em Paris, em 2024. Algum atleta olímpico brasileiro ganha uma medalha no breaking e o esporte vira pauta nas escolas, nos jornais, surgem palestras sobre isso. Não precisamos esperar por um acontecimento extraordinário para valorizarmos o esporte. Vamos apoiar hoje, inserir na rotina como lazer, como algo que dá prazer em praticar, em assistir, em consumir. Chame as amigas, encontre um grupo negro daquele esporte que você quer praticar e se joga. No nosso site você encontra o Mapeamento Afro Esporte de grupo esportivos preto, dá uma olhada e veja se encontra algum da sua cidade.
RME: Para fechar nossa entrevista, eu quero propor uma reflexão sobre uma situação envolvendo um atleta negro e a pressão do público. Na edição deste ano do reality show Big Brother Brasil, o atletista e campeão pan-ameriano Paulo André foi anunciado como um dos participantes. Logo em seguida uma chuva de críticas baseadas na constatação “ele largou o patrocínio para se tornar celebridade” caiu sobre PA. Qual é a sua visão sobre essa situação?
ML: Leitor e leitora, pensem comigo: você recebe R$1850* e com esse valor você tem que pagar nutricionista, personal, terapeuta, comprar tênis, comprar roupa. Tem que comprar proteína, frutas e verduras uma vez por semana. Isso sem contar água, luz, gás… E você recebe a oportunidade de ganhar 500 vezes, para chegar perto de 1 milhão de reais, e, além disso, você pode trabalhar a sua imagem, ter a oportunidade de fechar parcerias com grandes marcas que você nunca sonhou ser possível, e alcançar sucesso e visibilidade imensos. Você iria? A resposta está aqui! As críticas ao PA foram tão presentes porque todo mundo quer dizer o que pessoas negras podem ou não fazer. E é sempre com a consciência no empregador. É sempre o pensamento de “já alcançou muito”, já é um atleta. Quer mais o quê? Vai acabar com a carreira se participar desse reality”. O que é acabar com a carreira de um atleta? A vida de um atleta preto brasileiro é só de resiliência. Qualquer pessoa do meio viraria para ele e diria “vai, colega, porque se você for depender deste país, deste governo, como homem negro no mundo dos esportes, com 1850 reais…vai e vai logo!”.
*O valor de R$1850, pago ao Paulo André pela Bolsa Atleta Federal, veio à tona quando o Ministro da Cidadania, João Roma, sugeriu o corte enquanto o atleta participava do reality show BBB14 em março de 2022 (https://www.terra.com.br/esportes/paulo-andre-pode-perder-bolsa-atleta-por-participar-do-bbb22,5e1c8e8812a63f6457a62a96c14960cdxpzmozt9.html)