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PING-PONG COM A RME: Cris Guterres fala da potência que habita nos corpos negros

Jornalista, que já foi empreendedora ao comandar o restaurante que recebeu de herança dos pais, decidiu seguir seus próprios sonhos e hoje viaja Brasil afora comentando assuntos importantes e compartilhando conhecimento

Publicado em 20 de julho de 2022

Cris Guterres tem uma grande lista de qualificações e premiações. Empreendedora, já comandou o restaurante Atrium, herdado dos pais e que encerrou suas atividades no ano de 2021, hoje ela está à frente da própria empresa, que gerencia sua carreira e agenda. Jornalista, colunista e apresentadora, ela falou com a RME sobre a importância de recontar histórias negras e de olhar corretamente para as comunidades negras da nossa sociedade.

RME: Qual a importância de celebrar o dia da Mulher Negra latino-americana e caribenha para celebrar a potência e importância das mulheres negras de forma que não é possível fazer no Dia das Mulheres?

CG: Nós vivemos em uma sociedade racista que ousa categorizar as pautas, as pessoas a partir de um ideal do que deveriam ser as pessoas. E na nossa sociedade, nós categorizamos a pauta das mulheres a partir do ideal de quem deveria ser a mulher branca, que é a mulher do 8 de março. A necessidade de virmos com uma data em julho, cunhada pelas mulheres pretas, foi para que a sociedade visse que nós, mulheres negras, não estamos sendo salvas nas políticas públicas. Muito pelo contrário, nós somos quem mais apanha, quem mais morre, quem são mais esquecidas pelas leis. Então essa data é para que nós como mulheres negras, indígenas, trans clamemos por nossas vidas. E serve também para acolher a latinidade que nós temos. Brasileiros tendem a se acharem melhores que outros países da América Latina, mas se nos aceitarmos e nos acolhermos, talvez poderemos enxergar a melhora da nossa sociedade.

RME: Pensando ainda nas políticas públicas que não nos acolhem, como é que podemos abordar e conscientizar a nossa amiga, as mulheres negras que estão ao nosso redor sobre saúde e cuidado?

CG: Eu acho que essa consciência já é nossa! Eu tive 15 anos de Secretaria de Saúde de São Paulo, atuei mais na região oeste, que se formos pensar é uma das regiões menos pobres da cidade de São Paulo, mas tive contato com inúmeras regiões em atendimento e uma coisa que eu vi é como as mulheres periféricas movem o mundo pela margem! E elas estão no conselho de história, elas estão na unidade de saúde. Se você reparar, na favela tudo é coletivo. Se está acontecendo um churrasco, um traz um pouco, o outro traz mais alguma coisa. Se eu vou buscar um remédio, eu busco para você também! A questão é que nós precisamos lutar muito para as políticas nos alcançarem porque elas não nos atendem. A mulher negra até é a mais atendida nas unidades de saúde, mas ela não é acolhida pelo médico, que não fica nem cinco minutos com ela em consulta, que não aplica anestesia nela durante o parto, por uma série de questão do racismo estrutural presenta na nossa sociedade. É por isso que precisamos lutar por um atendimento de qualidade. E essa luta se avançando porque as mulheres estão se candidatando cada vez mais para cargos eletivos porque elas perceberam que se elas não estiverem mais atuantes nesse espaço, as políticas, oferecidas a nós, não vão mudar.

RME: Numa sociedade excludente e racista como a brasileira, como é que projetos como a Periferia Inventando Moda caminham em direção a inclusão racial em ambientes majoritariamente brancos?

CG: Caminham com muita dificuldade! O Periferia Inventando Moda foi criado por dois homens, brancos, cis gêneros e homossexuais, mas que tinha esse recorte racial muito intenso. O Alex Santos, o estilista que criou o projeto, era morador da favela de Paraisópolis, tinha muito nele a necessidade de quebrar as estruturas da moda. Primeiro, a intenção era que esse grupo majoritário branco olhasse e enxergasse a favela como potência. Porque eles não enxergam, mas adoram copiar tudo que fazem. A favela não tem o financeiro necessário para desenvolver as ideias, então esse grupo vai lá e roubam essas ideias. A estrutura é muito racista e dificulta muito que essas pessoas cheguem lá. Um exemplo, diferente mas que tem tudo a ver, é Manoel Soares. Ele é co-fundador da CUFA. É um cara das periferias, dos movimentos sociais, jornalista, furou a bolha, se destacou e foi escalado para assumir o programa Encontro junto com a Patrícia Poeta. Se não fosse pelo racismo estrutural que temos no Brasil, Manoel Soares, assim como o Periferia, seria apresentador de um programa da Globo, com a Patrícia Poeta, e o programa teria lá o nome dele. Eu estou chocada até agora. Se ele fosse um homem branco, nunca que o programa se chamaria Encontro com Patrícia Poeta, porque nós estamos cansados de ver programas com um casal de apresentadores brancos e o programa não tem o nome de ninguém. Mas como o Manuel é negro, o programa tem o nome da Patrícia Poeta. São dessas barreiras que nós estamos falando. Nós criamos, transformamos, falamos de diversidade, geramos dinheiro, porque o Manoel dá um baita de um dinheiro para Globo, mas não dão reconhecimento. Em 2021, eu ainda converso com empresas, pergunto “o que vocês fazem sobre ESG?” e eles me respondem que doam cestas básicas. A periferia não quer cesta básica. Ela quer reconhecimento, remuneração, investimento. Nós somos potência, não somos o problema desse país.

RME: Como o afrofuturismo tem contribuído para o reconhecimento e redescobrimento racial da população negra?

CG: É muito importante falar desse movimento, que não é novo, mas segue sendo muito rico. Iniciado nos anos 60 partindo muito do questionamento da população negra para se ver no futuro. E hoje temos, através do afrofuturismo, uma porta aberta para potências na literatura, como Ale Santos, que acabou de lançar livro, Fábio Cabral produzindo coisas maravilhosas. Ainda assim, vamos lutando com muita dificuldade, sendo questionados em toda oportunidade, mas acho muito bonito também como esse movimento dá oportunidades para talentos brasileiros se expandirem

RME: Falando um pouco sobre o Estação Livre, como é apresentar um programa que conta histórias, expõe situações alarmantes e compartilha conhecimento sobre vidas negras?

CG: É maravilhoso! A melhor coisa é quando eu ando na rua e alguém vem me agradecer por ele. Quando nós estreamos, tínhamos na plateia o Dr.Júlio, médico, e o Dr. Alexandre, fisioterapeuta, com dreads ainda. E eu recebi um áudio de uma pessoa amiga minha, que tinha ido passar as férias na Bahia, encontrou um amigo e esse amigo falou “nossa, você precisa conhecer um programa novo da Tv Cultura, com uma apresentadora negra, que só fala da população negra. A minha mãe assistiu chorando de emoção!”, porque ela assistiu no dia dos médicos negro e a mãe dele nunca tinha visto médicos negros na vida. Em 50 anos de vida! É sobre isso. Sobre revelar para nossa comunidade que nós podemos estar em qualquer lugar, sobre contar histórias de pessoas que foram invisibilizadas. Falar que Machado de Assis é preto sim, mas que embranqueceram ele para que a genialidade dele fosse aceitada, que Liberdade não é um bairro de japoneses, mas é Liberdade porque os pretos gritaram liberdade naquele bairro. Que o Bixiga não é bairro de italianos, porque foram os negros que construíram toda a estrutura daquele lugar, mas acabaram expulsos com a chegada dos italianos. Eu fiquei muito feliz com esse convite da TV Cultura e fico muito feliz também que estejam surgindo outros programas do mesmo tipo em outras emissoras.

ARTIGO ESCRITO POR

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Formada em Jornalismo, seu Trabalho de Conclusão de Curso foi uma pesquisa crítica acerca do olhar que a grande mídia tem sobre corpos femininos negros e as narrativas sobre eles construídas. Apaixonada por conhecimento e curiosa para entender mais sobre o mundo, segue estudando sobre comportamento, colorismo e mídia.

Karina Souza Quenis Jornalista